Artigos -
Cultura
A estupidez, afirma Voegelin,
sempre foi um fenômeno reconhecido pelas civilizações antigas: o nabal
(tolo) em hebraico, o amathes (homem irracionalmente ignorante)
platônico, o stultus (tolo) de Tomás de Aquino. Todos os três criadores
da desordem na sociedade em razão da “imagem defeituosa da realidade”
com a qual enxergam a existência.
Qual o objetivo da filosofia política? Segundo o professor Olavo de Carvalho, é o de “iluminar intelectivamente a experiência da ordem (ou desordem) político-social”. E desde os tempos de Sócrates, Platão e Aristóteles o esforço explicativo da filosofia política foi balizado pelas “duas outras ordens que, com ela (com a ordem política e social) compõem a estrutura integral da realidade: a ordem cósmica ou divina (do natural ao sobrenatural) e a ordem interior da alma tal como o filósofo a descobre e a realiza em si próprio mediante a participação consciente na sociedade e no cosmos”.
Nos livros Jardim das Aflições, O Imbecil Coletivo, e em seu site pessoal, o professor Olavo publicou imagem que mostra a articulação das três ordens que compõe a estrutura integral da realidade:
Uma filosofia política deve, então, estudar e esclarecer o “mundo” humano, mas sem se esquecer, no entanto, do resto da realidade, ou seja, da alma individual, do “mundo” natural e, claro, de Deus.
Não precisamos imaginar o que aconteceria com a análise da política se Deus fosse deixado de lado, pois é exatamente o que acontece no mundo Ocidental desde pelo menos o século XVII. Se nas concepções clássicas e cristã “a substância da ordem consiste na homonoia de seus membros”, ou seja, se os indivíduos “são membros da sociedade na medida em que participam do nous, no sentido clássico, ou do logos, no sentido cristão”, a partir de Hobbes o summum malum substitui o summum bonum divino na hierarquia do ser.[1]
A consequência dessa substituição do summum bonum pelo summum malum é o que Eric Voegelin chamou de “redução ontológica”: numa busca desesperada por peças de reposição para o nous e o logos (tentativa que Voegelin chama de “sucedâneos ontológicos para a ordem”), os “filósofos” foram “resvalando hierarquia abaixo” da estrutura do ser.
Partiram de Deus (concepção clássica e cristã) e aterrissaram de cabeça nos fluidos dos impulsos biológicos (psicologia do inconsciente de Freud), passando pela guilhotina da razão (iluministas),se embrulhando na inteligência pragmática, abraçando a utilidade (John Stuart Mill e utilitaristas), sendo esmagados pelas forças de produção (Karl Marx) e pelos determinismos raciais (Gobineau).
A descrição, análise e preocupação com o fenômeno da “perda de Deus” – e as conseqüências dessa perda – são parte importante das obras de Olavo de Carvalho e Eric Voegelin. Dentre elas está o fenômeno de estupidificação ou idiotização pelos quais passam os indivíduos e sociedades.
Voegelin começa a explicar a estupidez humana com a pergunta: o que é o homem? Segundo o filósofo, duas respostas foram delineadas por duas civilizações que tiveram experiências distintas sobre o que é o homem: as resposta helênica e resposta israelita.
Os filósofos gregos do período clássico experienciaram o homem como sendo um ser constituídos pela razão (nous). Os israelitas, o experienciaram como sendo “o ser a quem Deus dirige a sua palavra, ou seja, como um ser pneumático que está aberto à palavra de Deus”[2]. Na perspectiva greco-hebraica, o homem é, pois, constituído de razão e espírito.
Mas o que significa existir constituído pela razão e pelo espírito, pergunta Voegelin. Significa que, tanto a experiência da razão, feita pelos gregos, quanto a do espírito, feita pelos judeus, mostram que o homem tem uma experiência de si mesmo como um ser que não existe por si mesmo, ou seja, existe em um mundo já dado; mundo que existe “em razão de um mistério”; mistério que é a causa do ser do mundo; mundo do qual o homem é um componente. E o nome dessa causa misteriosa é Deus.
Os conceitos methexis e participatio, grego e latino, respectivamente, significam participação no divino. A primeira é um “sair de nós mesmos em direção ao divino”, à Sabedoria, por meio da razão; a segunda é o “encontro amoroso através da palavra”, do Logos, por meio do espírito, da revelação. E é nessa participação no divino que a dignidade específica do homem reside, conclui Voegelin; nossa dignidade está no fato de sermos “teomórficos” (grego), de sermos a “imagem de Deus” (judaísmo e cristianismo)[3].
A “perda de Deus” é, ao mesmo tempo, uma negação da participação do ser humano no divino. E como é essa participação a constituição essencial do homem, a desdivinização é acompanhada, necessariamente, de um processo de desumanização. Conseqüência de “um fechamento deliberado de si mesmo para o divino”, a desdivinação provoca a “perda da realidade”, já que Deus é o “fundamento do ser”, é a possibilidade de tudo o que existe[4].
Perdida a experiência da realidade divina, do fundamento do ser, os indivíduos e as sociedades tornam-se incapaz de orientar corretamente sua atuação no mundo, tornando-se, assim, estúpidos, imbecis.
A estupidez, afirma Voegelin, sempre foi um fenômeno reconhecido pelas civilizações antigas: o nabal (tolo) em hebraico, o amathes (homem irracionalmente ignorante) platônico, o stultus (tolo) de Tomás de Aquino. Todos os três criadores da desordem na sociedade em razão da “imagem defeituosa da realidade”[5] com a qual enxergam a existência.
Numa aula em que aborda a filosofia de Santo Agostinho, Olavo de Carvalho expressa sua posição sobre o fenômeno da imbecilidade; posição muito similar a de Voegelin:
O ser humano emerge para dentro da vida a partir de um fundo que lhe permanece desconhecido, mas que continua dentro de si como um componente problemático. Então o homem é aquele que se pergunta sobre o seu fundamento. Isto já estava dito nos gregos. Platão colocava que o homem que não tem esta interrogação sobre o fundamento da sua existência era chamado amathes (mathes, da raiz “saber”), o homem sem saber, sem sabedoria. Amathes pode ser traduzido como “homem estúpido” (ou idiota, ou imbecil).
(Quando publiquei um livro chamado O Imbecil Coletivo, todo mundo só pensou que era insulto. Não! O conceito de “imbecil” é um conceito filosófico que tem uma tradição de 2.400 anos. É um conceito perfeito...Não, não estou brincando! É uma coisa perfeitamente delineada, que tem um imensa bibliografia, que vai desde Platão até o século XX, quando se tem estudos sobre isso. Há o famoso estudo de Robert Musil, Über die Dummheit. Dummheit é um palavra até mais...até pelo som se vê. Esse “dum” quer dizer que o sujeito é um negócio fechado, sem nenhum interesse, é maciço. Dummheit só pode ser estupidez maciça. Esse é um livro de trinta páginas, absolutamente maravilhoso, continuação de uma tradição).
Então, quando um filósofo fala da imbecilidade ou da estupidez, ele sabe do que está falando. É um fenômeno gravíssimo da constituição humana que se manifesta pelo desinteresse pelo fundamento. O fundamento é aquilo que está dentro de você e que o transcende, é a parte misteriosa, é o apeíron, o indefinido que está embaixo e dentro de você, e acima também. Quando você se fecha para este fundo, quando não quer mais saber dele, fechou-se só naquilo que constitui você mesmo tal como você está; fechou-se no mesmo. “Mesmo”, em grego, é idios, então você se tornou um idiotes, que é um indivíduo que só sabe do mesmo, que não conhece aquela alteridade, aquele outro, aquele fundamento abissal que existe dentro dele. Só sabe dele mesmo, daquilo que ele mesmo pôs no circuito dele mesmo. Tudo o que constitui sua verdadeira realidade e que vem de fora, vem de cima e vem de baixo, vem do infinito, para ele não existe. Então, é evidente que é um idiota! Ele não sabe onde está! [6]
A perda de Deus desorientou tanto a ordem política e social do Ocidente quanto àqueles que deveriam elucidar e explicar essa ordem, ou seja, os filósofos políticos. As tentativas de explicar a mixórdia dos últimos séculos são elas mesmas mixórdias. E assim, montados sob os ombros de falsos gigantes tornamo-nos imbecis sem Deus. Na teoria e na prática.
Notas:
[1] VOEGELIN, Eric. Bases morais necessárias à comunicação em uma democracia. http://migre.me/cMsX9
[6] CARVALHO, Olavo. História Essencial da Filosofia, v.10, Santo Agostinho. 1ed., São Paulo, É realizações, 2003, p.26-27.
Luiz Felipe Adurens Cordeiro é sociólogo e jornalista.
Fonte: mídia sem máscara
Fonte: mídia sem máscara
Nenhum comentário:
Postar um comentário