Por Gutierres Fernandes Siqueira
A doutrina dos dons espirituais é um divisor de águas na liturgia cristã e uma contribuição marcante do pentecostalismo na teologia da cristandade. Os dons espirituais seriam, por assim dizer, a manifestação visível do Espírito Santo, a terceiro pessoa da Santíssima Trindade, no ordenamento e na construção do culto por meio do indivíduo portador do carisma. É a participação ativa de Deus no culto a Ele próprio, mas esse manifestar se dá pelo homem como “instrumento” consciente e dotado de arbítrio livre. Os dons, portanto, são mais uma manifestação da graça divina e a lembrança que a liturgia, assim como a própria salvação, não é fruto do mérito humano.
A doutrina do dons é esboçada e explicada pelo apóstolo Paulo especialmente nas epístolas aos cristãos corintios e romanos. É interessante, logo no início, perceber que essas igrejas estavam em um contexto pagão e cosmopolita. As cidades de Corinto e Roma eram parecidas com o mundo ocidental de hoje, ou seja, uma sociedade pluralista, nominalmente relativista, supersticiosa, consumista e que, de certa forma, valorizava a alta cultura. Eram a essência da cultura greco-romana e estavam distantes do hebraísmo dos judeus. Nesse caldo cultural, o culto pagão era fortemente místico. E, neste contexto místico, há a doutrina cristã dos dons.
Os dons, portanto, como constituições de graça divina para edificação da Igreja visam, também, uma maior eficácia na comunicação do Reino. O contexto cosmopolita é cheio de ruídos de comunicação, mas a mensagem cristã sempre deve ser transparente, clara e objetiva. Não é à toa que Paulo prefere falar poucas palavras inteligíveis do que em muitas línguas sem interpretação (cf. 1 Co 14. 19). Enquanto isso, os oráculos gregos não tinham nenhuma preocupação com as próprias mensagens sem nexo. Eram conhecidos por “religiões de mistérios”. O êxtase e o culto baseado em drogas alucinógenas eram práticas comuns no Império Romano, mas o cristianismo vinha com uma doutrina mística, porém ordeira, inteligível e, também, relevante pela mensagem do Evangelho.
O apóstolo Paulo destaca que os ídolos são mudos (1 Co 12.2). Ora, por que o êxtase poderia ser concluído a partir da mudez dos ídolos? Na verdade, é na falta de inteligibilidade que está a verdadeira questão. Tomás de Aquino, comentando o texto em questão, escreveu que a “falta de expressão [do ídolo] é particularmente salientada [por Paulo] porque a fala [o discurso] é o efeito necessário do conhecimento” [1]. O apóstolo não desejava uma igreja ignorante sobre os dons, assim como viviam na ignorância do paganismo.
O apóstolo contrasta a vivência idólatra passada dos coríntios com a nova experiência cristã carismática (cf. 1 Co 12.1-4, especialmente v. 2) [2] [3]. É um contraste, não uma comparação em busca de semelhanças. Na experiência cristã a base da espiritualidade carismática não é o nível do êxtase, a extravagância do culto, o espetáculo do oráculo, mas sim a confissão cristocêntrica nos enunciados, nas elocuções e nas revelações. É o Senhorio de Cristo que delimita o factível no exercício dos dons espirituais. É na confissão de fé cristã e não, como já dito acima, no movimento corporal ou na expressão de oratória - recheada de clichês religiosos e místicos - que se define a espiritualidade cristã.
Assim como no passado, a doutrina dos dons faz todo o sentido para o contexto vivido na contemporaneidade. Não só porque a sociedade busca experiências autênticas e místicas, mas também porque vive completamente sem direção e sentido. Os dons, no contexto eclesiástico, não são somente a consolidação da comunhão e edificação mútua, mas obviamente um espaço para vivência mais presente da comunicação divina. Agora, a doutrina não é somente verdadeira porque faz sentido, mas sim porque é biblicamente sustentável, mas toda doutrina bíblica precisa, também, fazer sentido para o ouvinte. E o sentido está na supremacia de Cristo. A fé carismática precisa ser necessariamente cristocêntrica ou não é realmente carismática.
Portanto, a espiritualidade ligado aos dons nada mais é do que cristocêntrica, comunicacional (evangelizadora) e relevante para o contexto contemporâneo.
[Este artigo faz parte de um futuro e-book sobre o assunto a ser publicado em conjunto com o amigo Victor Leonardo Barbosa]
Referências Bibliográficas:
[1] AQUINO, Tomás de. Commentary on the First Epistle to the Corinthians. 1 ed. São Paulo: Kindle Amazon, 2012. pos 2812.
[2] FEE, Gordon D. The First Epistle to the Corinthians. 1 ed. Grand Rapids: Eedmans Publishing, 1987. p 574.
[3] Esse é o trecho mais controverso exegeticamente de I Coríntios. Por isso, as interpretações variam. O teólogo D. A. Carson, por exemplo, discorda que Paulo faça paralelos de contraste entre o êxtase pagão e o dom carismático. Para Carson o versículo dois é a extensão do primeiro, ou seja, Paulo fala sobre a ignorância (alienação) pagã e não, necessariamente, da experiência mística-religiosa pagã. cf: CARSON, D. A. A Manifestação do Espírito. A contemporaneidade dos dons à luz de I Corintios 12-14. 1 ed. São Paulo: Edições Vida Nova, 2013. p 27. Uma posição contrária pode ser lida em: KISTEMAKER, Simon. 1 Coríntios. 1 ed. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004. p 572-574. Veja também: PALMA, Anthony D. 1 Coríntios. Em: ARRINGTON, French L. e STRONSTAD, Roger. Comentário Bíblico Pentecostal: Novo Testamento. 4 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2006. p 1008-1010. MORRIS, Leon. 1 Coríntios: Introdução e Comentário. 1 ed. São Paulo: Edições Vida Nova, 1981. p 132-133. PRIOR, David. A Mensagem de 1 Coríntios: A Vida na Igreja Local. 2 ed. São Paulo: ABU Editora, 2001. p 205-208. HORTON, Stanley M. 1 e 2 Coríntios: Os Problemas da Igreja e Suas Soluções. 4 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2007. p 111.
via blog teologia pentecostal
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