sábado, 14 de junho de 2014

Aperitivos da Guerra Política – II – A política, afinal

 

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Um dos críticos deste blog disse que eu falo demais em política. Mal sabia que toda vez que dizia isso ele era vítima de alguém fazendo política. Sim, pois sua rejeição à participação política era interessante para pessoas que venciam batalhas políticas sobre ele. Já passou do momento de abordar a concepção de política tratada neste blog. Esta concepção permite, enfim, que tratemos a política de uma forma mais ampla, permitindo-nos criar praticamente um corpo de conhecimento para a política como um todo.
A meu ver, isso permite a criação de uma verdadeira consciência política, pois deixamos de perceber a participação política como algo “que tem a ver com eleições”, mas como algo inerente à vida humana. É preciso, antes de tudo, compreender que não existe a chance de alguém deixar “a política de lado”.
Dizem que religião, política e futebol não se discutem. Porém, qualquer pessoa consegue limitar a influência de religião e futebol em suas vidas. Quer um exemplo? Eu não gosto de futebol e não sou obrigado a assistir jogos de futebol. Eu não sou religioso e não vou à missas. Claro que existem influências culturais em nosso meio, tanto do futebol como da religião, mas podemos ter uma certa liberdade para tomar decisões. Se decidimos rejeitar a política, não podemos limitar sua influência em nossa vida. Na verdade tende a ocorrer o contrário: aqueles que rejeitam a política são os mais vulneráveis a ela.
Enfim, vamos definir o que é a política: a capacidade do animal humano, de forma individual ou grupal em agir, a partir de ações sociais, em questões onde há conflitos de interesses, ou seja, em situações onde indivíduos ou grupos buscam obter vantagem sobre outros indivíduos ou grupos. Simples assim.
De forma isolada, observe os componentes que definem a política:
  • a capacidade intelectual do animal humano (incluindo a capacidade de arquitetar artimanhas complexas, através da linguagem)
  • ações individuais ou grupais em busca de benefício
  • interações sociais (ou seja, não diretamente coercitivas)
  • conflitos de interesses
Hora de exercitamos esse conceito, com exemplos.
Imagine que nas eras tribais um grupo de cinco forasteiros decida invadir uma aldeia para estuprar quatro garotas belíssimas que lá habitam. Para isso, eles precisarão massacrar todos que virem pela frente. Obviamente, esta não é uma ação política, pois é diretamente coercitiva. Suponha agora que esses cinco forasteiros resolvam se apresentar à tribo, vendendo-se como detentores de uma voz divina, que lhes daria o direito de escolher as mulheres com as quais dormirão. Em troca desse direito (que eles disseram ser divino), prometem que a tribo terá colheitas fartas nos próximos anos. Note que esta já é uma ação política, pois atende a todos os quesitos: é utilizada a capacidade intelectual do animal humano (na criação de uma argumentação ou ao menos da manipulação da percepção alheia), a ação envolve indivíduos ou grupos, a interação é completamente social (pois eles estão fazendo uma proposta de convencimento em direção aos anciãos), e há conflitos de interesses (as mulheres não estão muito satisfeitas em serem ofertadas aos forasteiros). Claro que os líderes da tribo podem usar a força para obrigar as mulheres a dormir com os forasteiros, e essa é uma ação coercitiva. Porém, o discurso que levou à implementação dessa coerção foi feito a partir de uma ação política, pois os líderes da tribo não foram obrigados a aceitá-los. Eles foram convencidos.
Em outro exemplo, imagine um vilarejo que esteja para ser inundado por que um dique prestes a estourar. Suponha agora que todos os habitantes façam um mutirão, em extrema urgência, para reforçar a barragem e evitar a destruição de suas casas. Essa é uma ação política? Muito provavelmente não, pois não temos aqui conflitos de interesses. Porém se existir alguém de outro vilarejo com segundas intenções, tentando convencer as pessoas a não investir seus esforços nessa obra de reforço, passamos a ter uma interação política, pois, de novo, temos todos os quesitos da política atendido: a capacidade intelectual do animal humano, ações individuais ou grupais em busca de benefício, interações sociais e conflitos de interesses.
Alguns cientistas políticos vivem tratando a política como “questão de estado”. Essa é uma visão limitada, pois não passa da política pública, onde indivíduos ou grupos buscam obtenção de benefícios a partir do estado. Ora, se o estado é uma instituição que garante muito poder, é claro que obter benefícios a partir dele iria se tornar um dos principais focos da ação política humana. Mas limitar a política à “questões do estado” é ignorar a natureza humana. O fato é que todo o comportamento político independe da existência de um estado moderno. É por isso que tomar a política como “discussões sobre em qual candidato votar” é ignorar o principal da política: um componente inerente à espécie humana, do qual não podemos fugir.
Se o animal humano possui conflitos de interesses, se une a outros para agir, além de buscar vantagens e possui tendência a agir socialmente, a política é, portanto, inevitável. Quando alguém ser apolítico, obviamente está tentando te fazer de trouxa. Quando alguém afirma ser apolítico está declarando estar acima “dos conflitos de interesses”.  Além de uma arrogância infinita (pois só estariam acima dos interesses humanos as divindades, como aquelas que viveriam no Olimpo) de quem faz este tipo de declaração, é preciso de uma ingenuidade infantil para que a plateia acredite em algo assim.
Mas entendendo a política como ela é (pela ótica da dinâmica social, sem meios tons) podemos perceber que quando alguém se declara apolítico, está querendo vender ao público a ideia de que “está acima dos conflitos de interesses” (mesmo sem estar acima destes conflitos, obviamente, pois ele é um ser humano como outro qualquer). Com isso, essa pessoa quer que suas ideias defendidas sejam aceitas com mais facilidade. A heurística que ele tenta implementar na patuleia é a seguinte: (1) Estou acima dos conflitos de interesses humanos, (2) Logo, as ideias que defendo refletem o bem comum, (3) Aceite aquilo que defendo. Assim, a declaração “apolítico” não passa de um sofisticado jogo político. O tal “apolítico” não existe. Existe o jogo político dizendo “sou apolítico”, que só serve, naturalmente, à obtenção de vantagens políticas.
Além do “apolítico”, existem aqueles que manifestam desinteresse pela política. Assim, entendem que podem levar suas vidas sem serem afetados pelas guerras políticas (principalmente aquelas da política pública). Mas na verdade ocorre o oposto: essas pessoas continuam sendo afetadas pela política. Imagine por exemplo um sujeito que não se interesse por qualquer assunto político, mas é vítima da violência urbana, a partir das mãos de um menor de idade, que poderia estar atrás das grades. Foi uma ação política (a criação da lei de impunidade ao menor) que permitiu que adolescentes tivessem licença para matar. Politicamente, em muitos casos, ele não tem interesse em ser vítima de violência, mas seus opositores políticos tem consciência de que isso vai ocorrer com ele, e já tomaram partido (em favor dos menores infratores). O que temos aqui? Falamos de alguém inconsciente, em termos políticos. Mas isso não muda a realidade. Imagine um sujeito amarrado à uma linha de trem, prestes a ser esmagado por um vagão em questão de segundos. Ele pode até estar inconsciente do que vai ocorrer com ele. Mas isso não muda o fato de que ele vai ser esmagado. Pelo mesmo princípio, a inconsciência política não livra ninguém dos efeitos da política.
Existe também a figura do ingênuo político: aquele que não percebe os jogos políticos de seus oponentes. Esse tipo de comportamento resulta de uma mania de visualizarmos nós mesmos nos outros. Com isso, nos tornamos incapazes de perceber os interesses conflitantes. O resultado disso é uma incapacidade total para a participação política efetiva, em qualquer instância (incluindo a política corporativa e a política pública). Uma das principais lutas internas do animal humano deveria ser a eliminação da ingenuidade política, mas sempre tendo em vista que ela nunca será eliminada por completo. Para que a ingenuidade política chegue a zero, seria preciso ter a capacidade de ler as mentes dos outros, o que, como sabemos, só existe na ficção científica. O que podemos fazer é reduzir a ingenuidade política a um nível aceitável, tendo a capacidade de perceber os diversos jogos praticados pelos nossos oponentes.
Diante desta nova visão de política, temos que reconhecer o óbvio: não adianta fugir da política, pois somos animais humanos. Se em conflitos de interesses, você age socialmente ou a partir da coerção, basta seguirmos a lógica para saber que não adianta ignorarmos a realidade. A esquerda entende a política há muito mais tempo que a direita. Resta a nós estarmos conscientes do óbvio. Porém, não adianta nada pensarmos em atuar politicamente se ainda cairmos na conversa dos “apolíticos”, se continuarmos valorizando a inconsciência política e não fazermos nada para eliminar, dia após dia, a ingenuidade política. E sempre tendo em mente, como motivação adicional, de que não temos outra opção.
Fonte: http://lucianoayan.com/2014/06/13/aperitivos-da-guerra-politica-ii-a-politica-afinal/

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