Olavo de Carvalho
O Globo
O Globo
Quando escrevi -- na revista Época -- que no Brasil o grupo mais
discriminado eram os cristãos, nada disse sobre as perseguições
que sofriam em escala mundial. Digo agora: nenhuma comunidade humana ofereceu
mais vítimas à sanha assassina dos totalitários do
que a Igreja cristã. Só na Ucrânia os mortos na perseguição
religiosa chegaram a 4 milhões. É impossível um calculo
global exato, mas, entre as revoluções francesa, russa, mexicana,
espanhola, chinesa e cubana, o número de cristãos que pereceram
nas mãos do regime que professou, nas palavras de Lênin, “extirpar
o cristianismo da face da Terra”, não foi inferior a 15 milhões.
Se isso não foi o mais vasto genocídio da História,
a aritmética elementar foi revogada.
A maioria dessas vítimas eram ortodoxos, mas a Igreja de Roma não
saiu ilesa: em “Catholic Martyrs of the Twentieth Century: A Comprehensive
World History” (New York, Crossroad Publishing, 2000), o historiador
Robert Royal mostra que pelo menos um milhão de católicos
foram sacrificados no altar do comunismo.
Esse fato só é ignorado do público graças à
omissão proposital da hierarquia romana e dos intelectuais católicos.
Estes são hoje um dos esteios da revolução comunista
que, partindo da Colômbia, ameaça alastrar-se por toda a América
Latina. Mas não se pode dizer que sua escolha seja individual e extra-oficial.
Em 1962, na cidade francesa de Metz, emissários do Vaticano e do
governo de Moscou assinaram um acordo secreto pelo qual a Igreja se comprometia
a não fazer, durante o Concílio Vaticano II, nenhuma condenação
ao comunismo. O pacto, inicialmente desmentido pelas autoridades vaticanas,
foi revelado pelo arcebispo de Metz e depois confirmado por “La France
Nouvelle”, boletim do Partido Comunista Francês, pelo diário
católico “La Croix” e pelo próprio cardeal Tisserant,
encarregado pela Igreja de assinar o documento e zelar pela sua aplicação.
Daí por diante, todas as acomodações e cumplicidades
com os assassinos de cristãos tinham, por assim dizer, a chancela
conciliar. Mesmo a CNBB, entidade dedicada à glamurização
beata do comunismo, não pode ser acusada de desobediência.
Por isso é que, mais exatas ou menos exatas, as acusações
ciclicamente repetidas de que o Vaticano foi omisso ante as perseguições
de judeus não me espantam: por que é que o pastor há
de proteger as ovelhas do vizinho, quando com tanta solicitude entrega ao
lobo as suas próprias?
Os judeus, ao organizar-se mundialmente para preservar a memória
de seus mortos, fizeram algo mais do que agir na defesa de seu próprio
direito: agiram no interesse da espécie humana, fazendo da insistente
rememoração dos horrores da II Guerra um baluarte contra a
revivescência do totalitarismo nazista. Cumpriram seu dever para com
todos nós que, nascidos depois do Holocausto, poderíamos ter-nos
deixado enganar pelas promessas de novos tiranos salvadores se a memória
de seus feitos hediondos tivesse se apagado com o tempo em vez de nos ferir
os olhos e alertar o coração a cada vez que nos chegam novos
e novos documentos sobre esses fatos.
Contra o comunismo os judeus também não se calaram. Devemos
a autores judeus algumas das primeiras e mais dramáticas revelações
dos horrores por trás da Cortina de Ferro. Arthur Koestler, ex-agente
do Comintern, tornou-se objeto de ódio mundial dos comunistas ao
descrever a técnica da destruição psicológica
dos acusados nos Processos de Moscou. Menahem Begin deu-nos o conhecimento
do que se passava nos campos de concentração soviéticos
na época em que Stalin brilhava nas telas do Ocidente como a melhor
alternativa a Hitler.
E não pensem que, ao revelar essas coisas, eles tentem poupar os
membros da sua própria comunidade envolvidos em cumplicidade com
o comunismo. Ainda recentemente, os editores dos escritos do rabino Itzhak
Schneerson, o grande líder espiritual preso, torturado e exilado
pelos comunistas, não hesitaram em denunciar que entre os mais ferozes
repressores do judaísmo na Rússia estavam os membros da famigerada
Seção Judaica do Partido Comunista, que se prevaleciam de
suas ligações de língua e parentesco para servir de
espiões e desmantelar a comunidade judaica por dentro.
Por que os católicos não têm idêntica coragem
de cortar na própria carne para expelir do seu meio os devotos de
São Guevara? Será que estes se tornaram maioria entre os fiéis,
como já o são na CNBB?
Mas o exemplo de coragem não vem só dos judeus. Vem também
dos protestantes, como o pastor Richard Wurmbrand. Este notável homem
espiritual romeno teve destino análogo ao do rabino Schneerson: 16
anos de cárcere, incontáveis torturas depois confirmadas por
uma comissão médica da ONU. Espantado com a ênfase mais
anti-religiosa do que anticapitalista da propaganda comunista na prisão,
ao ver-se livre ele se dedicou a pesquisas históricas que resultaram
na descoberta de que Karl Marx nem sempre fora um adepto do materialismo,
mas andara metido num culto satanista e, segundo depoimento de sua empregada
e amante Helene Demuth, fazia estranhos ritos dentro de casa. Publicados
estes achados em “Marx and Satan” (Bartlesville, Oklahoma, The
Voice of the Martyrs, 1986), o livro tornou-se um sucesso de distribuição
clandestina nos países comunistas, ao mesmo tempo que, no Ocidente,
os intelectuais de esquerda, inclusive católicos, faziam o possível
para abafar sua difusão e a discussão séria de suas
revelações.
De que adianta proclamar que o catolicismo tem o monopólio da salvação,
se tantos e tão ilustres são entre os católicos os
que servem ao império da danação?
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