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O
nível de transformação não está apenas nas informações, mas nas
categorias cognitivas com que se julga as informações. Assim, não faz
mais nenhum sentido falar-se em busca pela verdade. Não há, nas
categorias revolucionárias, distinção possível entre mentira e verdade. E
é diante disso que devemos compreender que estamos submetidos a uma
mídia que nos engana a cada dia.
O sistema de mídia em atividade hoje é fruto de uma articulação longa e profunda entre intelectuais que lutavam pelo controle político do conteúdo e outros que buscavam modificar a própria função dos meios de comunicação. Embora o aspecto mais aparente da engenharia social seja o conteúdo das mensagens, o motivo da insuficiência informativa dos meios atuais é que a sua função foi mudada: de informativa para transformadora. Em vista disso, os cristãos parecem estar diante de uma tarefa dialética: se de um lado é preciso criar espaços informativos e formativos baseados na função clássica de comunicação cultural, de outro parece necessário conter o avanço do sistema anticristão que cria hoje a atmosfera de ódio contra cristãos, necessária à implantação de uma nova ordem global.
Com o lema “bom combate contra o mau cinema”, a Legião da Decência (Legion of Decency) foi uma associação de católicos norte-americanos da década de 1930 que conclamava fiéis a boicotarem filmes de Hollywood que tivessem mensagens imorais e críticas ao modelo de família, Igreja e sociedade. Foi um esforço iniciado pelo professor de dramaturgia Daniel Lord, de Chicago, ao qual uniram-se depois outros intelectuais católicos ligados ao cinema e a projetos culturais. Pode-se apelar a expedientes retóricos para igualar a iniciativa da Legião aos instrumentos de repressão de imprensa nazistas e fascistas, da Inquisição, do Index, etc, mas não se pode negar os seus frutos. Em primeiro lugar, devemos a eles os belos e edificantes clássicos do cinema americano da década de 1930.
Em segundo lugar, o código de ética distribuído em Hollywood pela Legião nunca foi um documento político ou governamental, mas respondia à percepção do próprio público sobre o potencial nocivo que o cinema estava causando e ainda podia causar na sociedade. Dentre os aspectos vigiados por eles nos filmes, havia um cuidado especial com imagens belamente pintadas ou enfoques atenuadores de pecados graves ou vitimização de bandidos, coisas que nem de longe se cogita hoje, quando a demonização do bem e a beatificação do mal tornaram-se já direitos sacrossantos dos artistas da TV.
Seria possível dizer ainda que o esforço da Legião da Decência teria sido em vão, afinal, tão logo chegaram os cineastas alemães adeptos da Escola de Frankfurt, a influência de Lord e outros “censores” foi caindo e, quanto mais viviam no meio dos cineastas, a sua sensibilidade ia deixando de perceber o que realmente se fazia em Hollywood. De fato muitas das cláusulas do Código de Produção redigido por Lord eram consideradas exageradas mesmo para a época. Mas vendo até onde a evolução do cinema e da comunicação de massa nos levou, devemos agradecer a Legion of Decency por termos na imaginação a função e o mérito verdadeiro do que são bons e edificantes filmes.
Lord tinha uma visão muito clara do que deviam ser os meios de comunicação. Assim como John Reith, fundador da BBC, Lord acreditava que o objetivo de qualquer produto cultural “deveria ser o aperfeiçoamento do homem: informar e educar, além de entreter”. O Código de Produção, escrito com a ajuda de Lord, vigorou no cinema americano de 1934 até os anos 1960. Embora a maioria dos cineastas e magnatas do cinema da época fossem judeus, é impossível acusar Lord de antissemitismo. A sua luta contra este problema era muito bem conhecida nos artigos de sua revista Queen’s Work (referência à Virgem Maria), onde também lutava contra o aborto, divórcio e outros problemas que começavam a surgir nos EUA.
A Legião percebeu rapidamente que uma forma de vigilância não-oficial é muito mais eficiente do que utilizar o aparato estatal para controlar qualquer coisa. A associação promovia ameaças de boicotes com abaixo-assinados de milhares de assinaturas em poucas semanas. Isso atemorizava não só os produtores mas até funcionários das empresas cinematográficas que se demitiam antes de iniciarem as produções. É claro que muitas das ações da Legião podem não ser exatamente aprováveis, pois se tratava de um tipo de censura prévia onde se avaliava e revisava roteiros previamente. Mas o fato é que até mesmo o governo Roosevelt declarou apoio às ações do grupo contra as más intenções que a indústria queria impor à sociedade americana por meio da cultura. Censura prévia pode ser algo reprovável, mas é difícil defender que uma sociedade não tenha o direito de impedir que a destruam.
O escritor Tim Woo, no livro Impérios da Comunicação, embora de orientação esquerdista e apoiador do lobby imoral de Hollywood, considerou admirável a atuação da Legião e a sua competência em encarnar a vontade de uma grande parcela da população do país. Nas palavras dele, “tratava-se de um movimento católico, mobilizado para disciplinar produtores judeus em nome de uma maioria protestante”.
Mas o sucesso da Legião, segundo Woo, se deveu também a uma confluência de fatores que fizeram com que o seu lobby surgisse no momento certo. Um deles foi a publicação de uma série de estudos acadêmicos que apontavam que os filmes eram perigosos para as crianças.
A declaração de adesão dizia:
“Quero ingressar na Legião da Decência, que condena filmes imorais e insalubres (...) Portanto prometo manter distância de todos os filmes, com exceção dos que não ofendam a decência e a moralidade cristã”.
O crescimento da associação teria se iniciado após o lançamento do filme Nunca fui santa. A partir do primeiro chamado, paroquianos católicos de todas as partes do país se uniram. Católicos, protestantes e judeus, eram todos bem vindos. Este não foi o maior movimento em nome da moralidade no país, mas afirma-se que tenha sido o que mais adesões obteve: em 1934, a Legião contava com 11 milhões de integrantes.
Junto de Daniel Lord, juntavam-se outros intelectuais católicos como Joseph Breen, conhecido inimigo da classe cinematográfica e artística que havia sido gerada em Hollywood. “Pessoas cujos valores morais, no dia a dia, não seriam tolerados no toalete de um leprosário têm ali os melhores empregos e ganham muito com isso”, dizia ele sobre a classe hollywoodiana.
A iniciativa da Legião motivou a Igreja Católica a publicar, em 1936, a Carta Encíclica Vigilanti Cura, escrita pelo Papa Pio XI, e dedicada ao episcopado norte-americano. Nela o Papa diz:
Antes de tudo, nos congratulamos convosco por ter esta Legião, guiada e instruída por vós e apoiada pela valiosa cooperação dos fiéis, já prestado, neste setor do apostolado, tão relevantes serviços; alegria tanto mais intensa quanto, angustiados, registrávamos que a arte e indústria do cinema chegara, por assim dizer, "em grandes passos fora do caminho", ao ponto de mostrar a todos, em imagens luminosas, os vícios, crimes e delitos.
A Legião, como foi aconselhado pelo Papa, não deveria ser uma “cruzada de breve duração”, mas uma “incessante e universal vigilância” movida pelo propósito de “defender a todo custo (...) em todo o tempo e sob qualquer forma que seja (...) a moralidade da recreação de um povo” (Papa Pio XI). A encíclica aconselha aos fiéis sobre os critérios do que seria um bom filme e um mau filme e seus efeitos*:
“21. Os malefícios dos maus filmes
É geralmente sabido o mal enorme que os maus filmes produzem na alma. Por glorificarem o vício e as paixões, são ocasiões de pecado, desviam a mocidade do caminho da virtude; revelam a vida debaixo de um falso prisma; ofuscam e enfraquecem o ideal da perfeição; destroem o amor puro, o respeito devido ao casamento, as íntimas relações do convívio doméstico. Podem mesmo criar preconceitos entre indivíduos, mal-entendidos entre as várias classes sociais, entre diversas raças e nações
22. Os bons filmes e seus frutos
As boas representações podem, pelo contrário, exercer uma influência profundamente moralizadora sobre seus espectadores. Além de recrear, podem suscitar uma influência profunda para nobres ideais da vida, dar noções preciosas, ministrar amplos conhecimentos sobre a história e as belezas do próprio país, apresentar a verdade e a virtude sob aspecto atraente, criar e favorecer, entre as diversas classes de uma cidade, entre as raças e entre as várias famílias, o recíproco conhecimento e amor, abraçar a causa da justiça, atrair todos à virtude e coadjuvar na constituição nova e mais justa da sociedade humana.”
A diferença substancial entre a guerra cultural da época de Pio XI e a que vivemos é a ampliação do campo de batalha. Se antes a guerra se dava somente no aspecto do conteúdo das mensagens, mais tarde evoluiu para a forma e, hoje, ela se dá também no campo da linguagem.
É preciso lembrar que a novilíngua revolucionária concentrou igual esforço tanto na mídia quanto nos meios acadêmicos e científicos de onde vieram as atuais fórmulas retóricas de defesa de direitos e deveres ou princípios democráticos como liberdade. Se no direito muda-se hoje o sentido da palavra “família”, há muito mais tempo o meio científico da comunicação já transformou o sentido de palavras como “imparcialidade”, “objetividade”, “sociedade”, “informação” e “conhecimento”. A função informativa do jornalismo bem como as funções de entretenimento, diversão e até educação de outros meios de comunicação que possam ser associadas a benefícios à sociedade, estão completamente carregadas de sentidos revolucionários e ligados intimamente a propostas de transformação social para as quais tudo vale, tudo pode. O nível de transformação não está apenas nas informações, mas nas categorias cognitivas com que se julga as informações. Assim, não faz mais nenhum sentido falar-se em busca pela verdade. Não há, nas categorias revolucionárias, distinção possível entre mentira e verdade. E é diante disso que devemos compreender que estamos submetidos a uma mídia que nos engana a cada dia. Nem podia ser diferente, pois ela só está aí para isso. Neste sentido não há como não lembrar o conselho de Joseph Goebbels: “A política noticiosa é uma arma de guerra. O objetivo é sustentar a guerra e não fornecer informações”.
A teoria da propaganda de Goebbels, em linhas gerais, pode ser resumida em um princípio: “as massas são ignorantes, portanto a mensagem deve ser direta; portanto, a propaganda deve agradar; para tanto, seu modelo não é a política, mas o entretenimento”. Quem evoca a liberdade de expressão como defesa contra qualquer tipo de controle ou censura, normalmente o faz pensando em um governo ditatorial que não permite que cidadãos isolados e indefesos o dirijam a menor crítica. Isso porque a imagem de uma ideologia hegemônica aliada a governos poderosos que promova o ódio entre as pessoas construindo imagens odiosas de uma parcela da população, está infelizmente ausente do imaginário construído por este sistema midiático e se tornou algo inverossímil. Mesmo que seja exatamente o que se construiu contra o cristianismo. Sei que é lugar comum recorrer ao nazismo para explicar certos fenômenos, mas não há figura mais clara: o nazismo não teria sido possível sem os filmes produzidos por Goebbels que ridicularizavam e demonizavam os judeus.
Sem o entendimento do que se tornou o atual sistema de mídia, é fácil defender a liberdade de expressão em favor dos que detém todo o aparato comunicativo. É preciso não ter nenhum conhecimento do arranjo midiático internacional e do jogo viciado que se tornou a comunicação de massas (vide Project Syndicate, Soros, etc), para achar provinciano e “atrasado” falar-se em vigilância moral e religiosa sobre peças culturais. E é justamente nisto que a Legião da Decência foi em muitos aspectos um exemplo de iniciativa para a defesa da sociedade (principalmente dos que têm poucos meios de defesa, como as crianças) contra o avanço da transformação social sonhada pelo globalismo esquerdista e já em grande parte conseguida pelos detentores dos meios de ação. A Legião era, como dissemos, não um meio de censura política ou estatal, mas uma iniciativa de intelectuais e famílias, membros do Corpo de Cristo que defenderam as futuras gerações ousando negar-se a assistir e a dar seu dinheiro a produções que ofendessem a sua fé e, pior, buscassem comprometer o próprio acesso à fé, por meio da criação de uma sociedade anticristã, como de fato foi feito e na qual vivemos hoje.
Desde a década de 1930 o anticristianismo tenta assaltar a indústria do cinema ao mesmo tempo em que ocupava todo o aparato midiático para controlar as imagens nas mentes das pessoas. Esse objetivo foi logrado em grande parte, graças a uma estratégia dialética que se divide em um assédio aos conteúdos das mensagens, a parte mais aparente, e a modificação da linguagem, a parte menos aparente. A Legião da Decência ocupou-se dos dois. Vigiava detalhes que hoje passam despercebidos da maioria dos cristãos e nisso ela correu na frente. Mas durou pouco, pois não seguiu o conselho do Papa Pio XI de ser uma força constante na sociedade. Hoje montamos guarda diante das principais entradas das mensagens midiáticas, mas nos esquecemos de que o ladrão experiente sempre conhece bem o caminho da porta dos fundos.
Referências:
Geovano Moreira Chaves, A Legião da Decência e a cruzada cinematográfica católica no Brasil - http://www.encontro2012.mg.anpuh.org/resources/anais/24/1340584634_ARQUIVO_artigofinalANPUH2012.pdf
Sumo Pontífice Papa Pio XI. Carta Encíclica Vigilanti Cura - http://www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_29061936_vigilanti-cura_po.html
Tim Woo, Impérios da Comunicação: do telefone à internet, da AT&T ao Google
Cristian Derosa, jornalista, é editor da Rádio Vox e do blog Agenda Global.
via mídia sem máscara
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