sexta-feira, 29 de março de 2013

Matar não é proibido, mas é crime

Saiu na Folha:

Não é legal
 
O Código Penal estabelece pena de 6 a 20 anos de reclusão para o ato de ‘matar alguém’. Daí não se deduz que o homicídio seja proibido no Brasil. Tanto não é que ocorre às dezenas de milhares todo ano. Nações avançadas conseguem diminuir bastante sua incidência, mas jamais erradicá-lo.

 
Somos livres até para fazer o mal, eis um fato da nossa condição. A distinção entre criminalizar e proibir pode ser útil para debater assuntos que dividem moralmente a sociedade, como as drogas e o aborto.

 
Quando a lei fixa penas para o aborto, ressalvando casos de risco de vida para a mãe e de gravidez provocada por estupro, o seu objetivo é refrear a prática. O efeito esperado é menos mulheres recorrendo ao aborto, no cotejo com uma situação hipotética em que ele não fosse crime.

 
Avaliar a eficácia da lei é um desafio lógico e estatístico, pois jamais saberemos como se comportaria a mesma sociedade, no mesmo tempo histórico, mas sob legislação diversa.

O artigo acima aponta um dos pontos que mais fascinam os estudantes de primeiro ano de direito, e é fundamental para entendermos a diferença entre moral e direito.

Se olharmos qualquer lei penal brasileira (e da maioria dos países), veremos que não há uma única regra penal que diga que é proibido cometer um crime.

O que a lei diz é que se a pessoa agir de determinada maneira, ela está se sujeitando a ser condenada a determinada pena. Se você aceita esse risco ou não, é algo que só você pode decidir.

Por exemplo, como a matéria afirma, nossa lei penal não diz que é proibido matar alguém. Ela apenas diz que, se você matar, você pode ser apenado entre 6 e 20 ano de reclusão. Se você acha que o risco de perder os próximos 20 anos de sua vida em uma cela vale a pena para se livrar de alguém de quem você não gosta, a lei não proíbe.

E por que ela não proíbe?

Porque ela sabe que é impossível proibir alguém de agir em todos os momentos de sua vida. Ela pode até tentar dissuadir (por exemplo, impondo uma pena ou fazendo com que as condições de cumprimento da pena sejam terríveis) ou impedir (por exemplo, impedindo o porte de armas ou protegendo a potencial vítima). Mas, proibir, ela não vai conseguir porque essa é uma decisão de foro pessoal de cada um de nós. É como o pai que tenta impedir que o filho apronte durante a infância: ele pode ensinar, dissuadir ou tentar impedir, mas não adianta proibir porque, no fim das contas, se o filho quiser, ele vai aprontar porque é impossível para o pai vigiá-lo todo o tempo.

Em outras palavras, aos olhos da lei, todos somos criminosos em potencial. O que nos distingue dos criminosos de fato é que todas as manhãs acordamos decididos a não cometer crime naquele dia. A viver mais um dia de forma honrada. E essa é uma decisão de foto íntimo, de ética pessoal.

Compare o que diz o Código Penal – “Homicídio: matar alguém. Pena: 6 a 20 anos de reclusão” – com o que diz a Bíblia – “Não matarás”.

Ao contrário da lei penal, a Bíblia proíbe a conduta de matar. Ela é dogmática. Ou você aceita os preceitos morais da religião ou não aceita. Não tem meio termo.

A Bíblia não perde tempo impondo uma pena: ou você cumpre os dez mandamentos ou não cumpre. Se você não aceitar ou não respeitar aqueles dogmas religiosos, sua punição é moral (dor de consciência, exclusão social, etc). Não há uma gradação (mesmo se você considerar que a confissão ao padre pode gerar uma punição, ela é uma punição puramente de foro íntimo: o padre não vigia se você de fato rezou a Ave Maria que ele sugeriu).

O Código Penal é lei; a Bíblia (como outras expectativas de conduta social, escritas ou não) é moral.

Na vida real, as leis quase sempre refletem a desaprovação moral da sociedade a respeito de alguma conduta. Algumas vezes, não (o caso do aborto é um exemplo).

Como o legislador sabe que é impossível controlar o livre-arbítrio do indivíduo, ele precisa estabelecer incentivos claros para dissuadir nós, potenciais criminosos.  Daí o surgimento das leis penais.

Como a lei independe da moral, sua punição também independe, ou seja, a lei consegue punir independente de o criminoso sentir-se culpado. Já a punição moral depende do sentimento de quem agiu. Se fulano não acredita nos dez mandamentos e não se importa com a cara fechada do padre, ele está ‘livre de punição’ moral.

 Fonte: Para Entender Direito

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