Olavo de Carvalho
Diário do Comércio
Desde que os exércitos aliados revelaram ao mundo
os horrores dos campos de concentração nazistas,
as tentativas de explicação histórica,
sociológica e psicológica de um fenômeno
tão inusitado e monstruoso criaram um dos ramos mais
prolíficos da bibliografia universal. A cada ano que
passa, centenas ou milhares de livros, teses acadêmicas
e artigos em publicações eruditas e populares
buscam enfrentar a questão angustiante: como e por
que foi possível a uma parcela da humanidade culta
rebaixar-se ao ponto de fazer da prática de crimes
hediondos em massa uma obrigação legal e um
mérito patriótico?
As respostas oferecidas podem ser divididas em três
grupos:
(1) A corrente dominante segue uma linha inaugurada pelo
Doktor Faustus de Thomas Mann, que busca as origens do
nazismo no subsolo irracional e satanista da cultura alemã.
A noção de que a história social e cultural
da Alemanha pudesse elucidar o totalitarismo e o holocausto
veio a se tornar um dogma do senso comum e a dominar, praticamente
sem contestações, toda essa imensa bibliografia.
A aposta nessa tese é compartilhada, em medidas diversas,
pelos autores e obras mais díspares, desde produções
acadêmicas respeitáveis como os estudos de Otto
Friedrich, Siegfried Kracauer, Lotte Eisner, Peter Gay, Carl
Schorske e as grandes biografias de Hitler por Joachim C.
Fest, Ian Kershaw, Alan Bullock, até obras de cunho
polêmico como The Pink Swastika, de Scott Lively
e Kevin Abrams ou The Occult Hitler, de Lothar Machtan,
e até mesmo especulações sobre a contribuição
ocultista à formação da ideologia nazi
(Nigel Pennick, Hitler's Secret Sciences; Peter Levenda,
Unholy Alliance: History of the Nazi Involvement with
the Occult; Dusty Sklar, The Nazis and the Occult;
Wilhelm Wulff, Zodiac and Swastika, Nicholas Goodrick-Clarke,
The Occult Roots of Nazism: Secret Aryan Cults and Their
Influence on Nazi Ideology etc.). O sucesso dessa linha
de investigações é facilmente explicável:
como o nazismo se definia a si próprio como um movimento
essencialmente nacionalista, nada mais natural do que buscar
suas raízes na cultura nacional que o produziu. Lendo
esse material, os alemães se convenceram de que são
um povo de criminosos e até hoje se desgastam em perpétuos
rituais de autopurificação, que contrastam de
maneira patética com a orgulhosa recusa comunista de
se entregar a idêntico exame de consciência.
(2) Ao lado dessa tradição, desenvolveu-se
outra que, ao contrário, procura dissolver a peculiaridade
nacional do nazismo no rótulo geral de "fascismo"
ou "nazifascismo", uma noção infinitamente
elástica que abarca de Hitler a George W. Bush, passando
pelos líderes sionistas e pelo general Augusto Pinochet,
sem esquecer o senador Joe McCarthy, a Igreja Católica,
as milícias patrióticas americanas, os militares
brasileiros e, de modo geral, todos os adeptos da economia
de mercado (ouvi com os meus dois ouvidos um professor da
USP, José Luís Fiore, exclamar: "Liberalismo
é fascismo!"). Explicando o fenômeno nazista
como imperialismo capitalista, esta segunda linha de investigações,
fortemente subsidiada pelos escritórios de propaganda
do governo soviético, é autocontraditória
e desprovida do mínimo de substância intellectual
que justifique um debate sério, mas, graças
à rede global de organizações militantes,
espalhou-se como uma peste nos meios universitários
do Terceiro Mundo, daí saltando para conquistar até
mesmo algum espaço na Europa e nos Estados Unidos.
No Brasil, tornou-se um dogma estabelecido e um dado do senso
comum. Raciocinar fora dela é considerado um sintoma
de doença mental ou uma prova cabal de inclinações
nazifascistas. Tsk, tsk.
(3) Uma terceira linha, que subordina o conceito de nazismo
à noção mais genérica das ideologias
de massa, sublinhando suas semelhanças com o comunismo
soviético e chinês e sondando suas origens nas
fontes gerais do movimento revolucionário mundial,
nunca alcançou a popularidade das outras duas, mas
teve boa aceitação em círculos de estudiosos
especializados graças às obras de Friedrich
Hayek, Ludwig von Mises, Hannah Arendt, Norman Cohn, Eric
Voegelin, Ernest Topitsch e, mais recentemente, Richard Overy.
O documentário de Edvin Snore, The Soviet Story,
que já comentei aqui e que vocês podem descarregar
com legendas em português no site www.endireitar.org,
traz uma poderosa confirmação à tese
número 3, reduz a número 2 ao engodo publicitário
que ela sempre foi e, se não impugna totalmente a número
1, debilita consideravelmente as suas pretensões a
ser "a" explicação dos crimes nazistas.
Ao mostrar que toda a técnica dos campos de concentração
e do extermínio em massa foi inventada pelos comunistas
e só tardiamente copiada pelos nazistas mediante convênio
com o governo soviético, Snore faz picadinho de qualquer
tentativa de atribuir a crueldade nazista a alguma causa especificamente
alemã. Os fatores culturais assinalados na tese número
1 explicam a emergência de um movimento nacionalista
de tipo místico e irracionalista, mas não a
extensão e a brutalidade quase inimaginável
de seus crimes. Afinal, movimentos de inspiração
idêntica surgiram em muitas outras partes do mundo sem
ter por isso recorrido sistematicamente ao genocídio
como técnica de governo. O próprio fascismo
italiano, com toda a rigidez fanática do seu autoritarismo,
nada fez de comparável ao Holocausto, e, segundo conhecedores
habilitados como Hannah Arendt e Miguel Reale, não
pode nem mesmo ser enquadrado legitimamente na categoria do
"totalitarismo", de vez que o governo de Mussolini
jamais tentou sequer obter o controle total da sociedade italiana
e, bem ao contrário, tolerou a existência de
dois poderes concorrentes: a Igreja e a monarquia. O emprego
sistemático do genocídio como instrumento de
governo foi invenção comunista. O que aconteceu
na Alemanha foi a fusão deliberada de um imaginário
de tipo nacionalista-místico com a técnica comunista
de governo. Essa foi a originalidade de Hitler, até
na opinião dele próprio. Ao declarar que toda
a sua luta se inspirava diretamente em Karl Marx, ele não
se referia, naturalmente, à mitologia patriótica
do nazismo, mas à organização socialista
da economia e sobretudo ao emprego sistemático do terror
genocida. Hitler fundiu Mussolini com Lênin, e a parte
genocida da mistura não veio do primeiro componente.
Um dos depoimentos mais importantes de The Soviet Story
é o de George Watson, um professor de literatura que
se especializou na pesquisa das fontes textuais do socialismo.
Autor de um importante estudo sobre The Lost Literature
of Socialism, que infelizmente não é citado
no filme, Watson descobriu que, antes de Marx e Engels, nenhum
ideólogo de qualquer espécie havia jamais proposto
a liquidação de "povos inferiores"
(expressão do próprio Marx) como prática
deliberada e condição indispensável para
a instalação de um novo regime. Nem mesmo Maquiavel
havia pensado numa coisa dessas. O genocídio é
criação sui generis do movimento socialista,
e sete décadas se passaram antes que uma dissidência
interna desse movimento desse origem ao fascismo e depois
ao nazismo, que tardiamente adotou a fórmula do morticínio
salvador então já posta em prática por
Lênin na URSS.
Fonte: http://www.olavodecarvalho.org/semana/090120dc.html
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