Artigos - Cultura
Praticamente tudo o que se lê na mídia brasileira sob o rótulo de
"análise política" não passa da elaboração apressada de fatos que o
comentarista extraiu da própria mídia. É a imagem popular do mundo
maquiada na linguagem do manual de redação. Nada mais.
Não é uma coisa séria. É show business, é diversões públicas, é
circo. Não existe para orientar o leitor, mas para mantê-lo satisfeito
com um estado habitual de desorientação no qual ele se sente
informadíssimo e repleto de certezas.
Análise política séria supõe informações ao nível dos melhores
serviços de inteligência, trabalhadas por uma consciência longamente
adestrada na meditação da História, da filosofia e da ciência política.
Isso está tão acima das possibilidades do comentarista vulgar que,
confrontado com algo do gênero, o infeliz se sente perplexo ante o
inusitado e reage com aquela típica irritação neurótica da burrice
humilhada.
Em tal circunstância, exclamações de "teoria da conspiração!" emergem
da sua boca quase que por reflexo condicionado. Chamar uma idéia de
"teoria da conspiração" não é refutá-la, é apenas xingá-la. Xingar é o
que você faz quando chegou ao último limite da sua capacidade e não
conseguiu nada. (Favor não confundir xingamento com palavrões
humorísticos usados para fins de sátira nos momentos apropriados.)
Diagnósticos de paranoia, de visão delirante, aos quais também muitos
recorrem nessas ocasiões, só valem quando embasados em algum
conhecimento de psicologia clínica, que invariavelmente falta a quem usa
desses termos como descarga de um sentimento de inferioridade
insuportável.
Não por coincidência, análises sérias, tão escassas nas páginas de
política, não faltam naquele setor especializado do jornalismo que se
dedica à economia e aos investimentos. É que o público dessa seção é
exigente, conhece o assunto, paga bem e quer opiniões sólidas. Não se
trata de um bando de sonsos em busca de alívio.
Nenhum empresário ou investidor aceitaria como analista econômico um
amador que tivesse como única ou predominante fonte de informações a
própria mídia popular na qual escreve. Mas o amador assim descrito é a
própria definição do que se entende por "analista político" no Brasil. É
um sujeito que não conhece os clássicos da filosofia política, não lê
revistas científicas da sua área, não tem a menor ideia de como
funcionam os serviços secretos dos diversos países, não pesquisa fontes
de informação discretas, e, enfim, acredita que o mundo é realmente como
sai na mídia. Pratica, em resumidas contas, aquilo que um jornalista de
verdade, Rolf Kuntz, chamava de autofagia jornalística: escreve nos
jornais aquilo que leu nos jornais.
Quando digo que isso é "praticamente tudo", e não "tudo", é porque,
descontados dois ou três sobreviventes do jornalismo às antigas, há
ainda um segundo grupo de exceções notáveis: são os desinformantes
profissionais ou agentes de influência. Pagos por organizações
partidárias, por governos estrangeiros, por elites bilionárias ou por
organizações revolucionárias internacionais (fontes que às vezes se
mesclam e se confundem), mentem mais que a peste, mas mentem com método,
segundo um plano racional, às vezes sofisticadíssimo, que o analista
habilitado discerne nas entrelinhas e que é, por si, informação
fidedigna, às vezes da mais alta qualidade.
Esses profissionais da desconversa são raros, mas não inexistentes na
mídia nacional. É preciso muita prática para distingui-los da massa dos
seus papagaios e clones, que aceitam as mentiras deles por hábito e as
repassam por automatismo. Quando uma informação falsa se tornou de
domínio público, é quase impossível rastrear-lhe a fonte, a qual só
aparece, quando aparece, na rara hipótese de um agente arrependido dar
com a língua nos dentes, quase sempre trinta ou quarenta anos depois de a
coisa ter perdido toda importância estratégica.
A ocorrência desses casos permite medir a confiabilidade média do
jornalismo político, quase matematicamente, pelo tempo decorrido entre o
engodo inicial e o reconhecimento público do engano cometido quando o
próprio autor da façanha, ou a revelação de documentos reservados,
afinal fornece à classe jornalística os meios de corrigir-se.
Por exemplo, a onda de pânico da mídia européia ante a "ameaça neonazista" na Alemanha cessou quando, com a reunificação do país, os documentos da Stasi vieram à tona, mostrando que os principais movimentos neonazistas na Alemanha Ocidental e até mesmo alguns nas nações vizinhas eram fantoches criados e subsidiados pelo governo comunista da Alemanha Oriental para despistar operações de terrorismo e assassinatos políticos (o atentado ao Papa João Paulo 2º foi um caso típico: leiam The Time of the Assassins de Claire Sterling e Le KGB au Coeur du Vatican, de Pierre e Danièle de Villemarest).
Por exemplo, a onda de pânico da mídia européia ante a "ameaça neonazista" na Alemanha cessou quando, com a reunificação do país, os documentos da Stasi vieram à tona, mostrando que os principais movimentos neonazistas na Alemanha Ocidental e até mesmo alguns nas nações vizinhas eram fantoches criados e subsidiados pelo governo comunista da Alemanha Oriental para despistar operações de terrorismo e assassinatos políticos (o atentado ao Papa João Paulo 2º foi um caso típico: leiam The Time of the Assassins de Claire Sterling e Le KGB au Coeur du Vatican, de Pierre e Danièle de Villemarest).
E no Brasil? Foi em 1973 que o ex-chefe da inteligência soviética no
Rio de Janeiro, Ladislav Bittman, confessou ter sido, em 1964, o
inventor e disseminador da lenda de que o golpe militar fora tramado e
subsidiado pelo governo americano.
Como, decorridos vinte e oito anos da revelação, ninguém na mídia
tupiniquim desse o menor sinal de desejar corrigir o engano geral,
escrevi um artigo em Época para lembrar aos colegas que antes tarde do
que nunca (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/sugestao.htm).
Mais onze anos se passaram desde então – e até hoje a conversa de que
"o golpe começou em Washington" ainda reaparece nos nossos "grandes
jornais", a intervalos regulares, no tom de verdade consagrada.
Credibilidade, neste país, é isso.
Publicado no Diário do Comércio com o título 'Credibilidade'. (via midia sem mascara)
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