Olavo de Carvalho
Diário do Comércio
Diário do Comércio
É ilusório esperar que a racionalidade científica prevaleça
num
confronto que envolve muitos interesses e paixões, mas não é demais
desejar que algumas pessoas capacitadas acompanhem e julguem o debate
desde um ponto de vista menos enviesado e mais compatível com o estado
atual dos conhecimentos.
O número dessas pessoas é,
com certeza, mínimo. O que se observa nas disputas correntes é que cada
facção, no empenho de conquistar a adesão do povo inculto e distraído,
procura não só simplificar suas idéias e propostas, comprimindo-as nuns
quantos slogans e chavões que
possam ser repetidos até impregnar-se no subconsciente da multidão como
imperativos categóricos, porém busca simplificar ainda mais as do
partido contrário, reduzindo-as a um esquema caricatural próprio a
despertar incompreensão e repugnância. Para os fins práticos da disputa
legislativa, é importante que tanto a adesão quanto a repulsa sejam
alcançadas da maneira mais rápida possível, contornando discussões
aprofundadas que poderiam amortecer as convicções da platéia ou adiar
perigosamente a sua tomada de posição. Isso implica que as idéias do
adversário não possam nunca ser examinadas objetivamente nos seus
próprios termos e segundo suas próprias intenções, mas tenham de ser
sempre deformadas para parecer tão repulsivas que a mera tentação de
lhes conceder um exame benevolente soe ela própria como repulsiva,
inaceitável, indecente.
O debate assim conduzido é, portanto, sempre e necessariamente
uma
confrontação de preconceitos, no sentido mais literal e etimológico do
termo. Esse sentido contrasta de maneira chocante com o uso polêmico
que no curso do próprio debate se faça desse termo como rótulo
infamante. Carimbar as idéias do adversário como “preconceitos”, dando
a entender que não passam de tomadas de posição irracionais e sem
fundamento é, na maior parte dos casos, nada mais que um pretexto para
não ter de examinar as razões que as fundamentam, muito menos a
possibilidade de haverem nascido de boas intenções. Aquilo que aí se
chama “debate” não é portanto nenhuma confrontação de idéias, mas uma
mera disputa de impressões positivas e negativas, um jogo de cena.
É também natural que,
justamente por isso, os debatedores procurem abrigar-se sob a proteção
da “ciência”, mas nenhuma acumulação de dados estatísticos, nenhuma
carga de citações acadêmicas ou mesmo de alegações cientificamente
válidas em si mesmas dará qualquer legitimidade científica a um
argumento, se este não inclui a reprodução fiel e a discussão
científica dos argumentos antagônicos. Ciência é, por definição, a
confrontação de hipóteses: se, em vez de ser examinadas extensivamente,
as opiniões adversas são escamoteadas, caricaturadas, deformadas ou
expulsas in limine da
discussão sob um pretexto qualquer, de pouco vale você adornar a sua
própria com as mais belas razões científicas do mundo. Não se faz
ciência acumulando opiniões convergentes, mas buscando laboriosamente a
verdade entre visões divergentes.
O teste da dignidade
científica de um argumento reside precisamente na objetividade paciente
com que ele examina os argumentos adversos. Quem logo de cara os
impugna como “preconceitos” nada mais faz do que tentar criar contra
eles um preconceito, dissuadindo a platéia de examiná-los.
Que as pessoas mais
inclinadas a usar desse expediente sejam em geral justamente aquelas
que mais apregoam a “diversidade”, a “tolerância” e o “respeito às
opiniões divergentes”, não deve ser necessariamente interpretado como
hipocrisia consciente, mas muitas vezes como sintoma de uma deformidade
cognitiva bastante grave; deformidade que, por afetar pessoas
influentes e formadores de opinião, arrisca trazer danos para toda a
sociedade.
Quando digo “deformidade
cognitiva”, isso não deve ser compreendido no sentido de mera
deficiência intelectual moralmente inofensiva. A recusa de examinar as
opiniões alheias nos seus próprios termos e segundo suas intenções
originárias equivale à recusa de enxergar no adversário um rosto
humano, à compulsão de reduzi-lo ao estado de coisa, de obstáculo
material a ser removido. Essa compulsão é de índole propriamente
psicopática (v. a ótima entrevista da psiquiatra Ana Beatriz Barbosa da
Silva em http://www.youtube.com/watch?v=m_wUDsshdvk).
Quando legitimada em nome de belos pretextos humanitários, torna-se uma
força ainda mais desumanizante, pois remove a conduta moral do campo da
vida psíquica concreta para o da simples adesão a um grupo
político ou programa ideológico. O ser humano então deixa de ser
julgado bom ou mau por seus atos e sentimentos pessoais, mas por aderir
à facção previamente autodefinida como detentora monopolística das boas
intenções -- facção dispensada, por isso mesmo, de conceder ao
adversário a dignidade da atenção compreensiva. A percepção direta das
motivações humanas é aí substituída por um sistema mecânico de reações
estereotípicas, altamente previsíveis e controláveis. E quando o
programa já se tornou tão disseminado na mídia, no sistema de ensino e
no vocabulário corrente ao ponto de já não precisar apresentar-se
explicitamente como tal, mas passa a soar como a voz impessoal e neutra
do senso comum, então a desumanização preventiva do adversário torna-se
o procedimento usual e dominante nos debates públicos.
Não é preciso dizer que esse
estado de coisas já vigora no Brasil desde há pelo menos uma década.
Estamos em pleno império da manipulação psicopática da opinião pública.
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